16.10.07

Para entender o Trem da Alegria

Texto retirado do Blog Acerto de Contas. Autor: Policarpo Júnior

Para se entender o teor e o propósito da PEC 2/2003 e daqueles que a estão propondo, é preciso remontar um pouco a trajetória do funcionalismo e dos órgãos públicos nos últimos anos.

É público e notório que antes da Constituição de 1988, o preenchimento de cargos públicos em todo o país ficava ao sabor do mandonismo do líder político de ocasião que se locupletava da sua posição de governador, deputado, senador, prefeito, etc., para preencher os postos de trabalho da máquina pública com pessoas que funcionavam como seus cabos eleitorais, pessoas de sua esfera pessoal de influência (amigos, familiares) ou então como forma de troca de favores entre políticos e juízes que empregavam alternadamente seus apaniguados.

Sabemos que a Constituição de 1988 pôs um determinado freio nessa prática ao tornar obrigatória a realização de concurso público para o provimento dos cargos públicos efetivos. Uso a expressão “determinado freio” porque o provimento dos cargos públicos ainda está muito longe de se reger verdadeira e completamente pelos princípios republicanos da impessoalidade, da moralidade, da legalidade e da competência, especialmente naquilo que se refere aos cargos comissionados e funções comissionadas.

O que ocorre é que existe a tendência dos segmentos mais organizados e republicanos da sociedade a exigir a progressividade na adoção de métodos e mecanismos mais impessoais, morais, legais e competentes na gestão da coisa pública, ao passo que aqueles segmentos que são herdeiros legítimos da tradição patrimonial, cartorial, anti-republicana e até mesmo escravocrata brasileira procuram sempre encontrar brechas e subterfúgios para fugir da determinação legal em sua universalidade. É desse modo, portanto, que muitas das determinações legais terminam por refletir não o interesse universal e republicano da sociedade, mas o interesse particular e patrimonial de determinados segmentos da elite.

Assim, vejamos como o teor e propósito da PEC 2/2003 se inserem no conjunto deste último tipo de tentativa de legitimar o interesse patrimonial, privado e mesquinho, em detrimento do interesse público e social.

Existe uma grande distorção salarial entre os diversos postos do serviço público. Essa distorção existe no interior de cada uma das instâncias federativas (federal, estadual e municipal), no interior de cada um dos poderes (executivo, legislativo e judiciário) e especialmente quando se comparam cargos e salários entre os diferentes poderes. Desse modo, é plenamente sabido que um funcionário público efetivo de um pequeno município do interior do país, especialmente em suas regiões mais pobres, tende a ganhar um salário muito menor do que um funcionário federal ou mesmo estadual, por exemplo. Obviamente, existem distinções, pois um funcionário municipal que ingresse no cargo efetivo de auditor municipal, por exemplo, ganhará provavelmente mais do que um funcionário público estadual que seja professor do ensino fundamental (infelizmente). Justamente por conta das incríveis distorções salariais no serviço público, entre seus poderes e instâncias, assim como pelas diferenças sócio-econômicas entre as regiões do país e mesmo no interior de cada uma dessas regiões, é público e notório que os graus de dificuldade e o critério de seleção dos concursos públicos variam enormemente entre os poderes da república, entre as instâncias (municipal, federal e estadual) e entre as localidades para as quais se destina o provimento dos cargos. Assim, apenas a título de exemplo, o concurso público para um cargo efetivo cujo salário seja de R$ 10.000,00 será indiscutivelmente mais concorrido (em quantidade e qualidade dos candidatos) do que um cujo vencimento seja de apenas R$ 500,00. Sabemos todos que essa disparidade salarial é real no Brasil e deve-se a essa disparidade a dificuldade de se melhorar a educação e a saúde do país, porquanto os salários dessas áreas são incomparavelmente menores do que salários de alguns serviços burocráticos do poder legislativo, judiciário e mesmo do executivo – esse, entretanto, é ponto de reflexão para outra ocasião.

Assim, o processo de provimento dos cargos públicos efetivos por meio do concurso público tem permitido que as pessoas mais qualificadas, sem que dependam de nenhum critério de relacionamento com autoridades, ingressem nos cargos mais bem remunerados e nos que oferecem melhores condições de trabalho, os quais também se situam, via de regra, nas localidades que oferecem melhores condições de vida em seus aspectos sociais e econômicos. Esse provimento é, portanto, impessoal e baseado exclusivamente no mérito dos candidatos atestado pelas instituições que realizam os concursos (sabemos que quando os próprios órgãos públicos realizam seu concurso diretamente, para o provimento dos cargos da magistratura estadual e federal, por exemplo, sem que seja contratada instituição idônea e capacitada para tal fim, não é incomum serem admitidos, entre outros aprovados, filhos de desembargadores e juízes, coisa que ocorreria com bem menos freqüência no caso desses concursos serem realizados por instituição nacionalmente respeitada e especificamente contratada para esse fim). Por outro lado, os cargos e funções comissionadas que existem em abundância em alguns órgãos públicos têm se convertido em moeda de troca para a falsificação do princípio republicano do preenchimento dos cargos públicos.

Diante do exposto, os parentes e amigos de juízes, políticos e pessoas de influência são com freqüência desclassificados quando se submetem a concursos públicos sérios. Assim, tais autoridades (desembargadores, ministros, juízes e políticos em geral) não conseguem empregar em cargos efetivos seus apaniguados na proporção em que gostariam. Recorrem, portanto, aos chamados cargos comissionados (de livre nomeação) e às funções comissionadas/gratificadas que são privativas de funcionários públicos (de qualquer instância ou poder). Quanto aos primeiros (cargos comissionados), apesar de sua remuneração ser de maior valor, inclusive em relação à quase totalidade dos cargos efetivos, seu número não é suficiente para saciar a fome privatista e patrimonial de muitos dirigentes públicos. Existe, assim, também, a função comissionada/gratificada que exige, para seu provimento, a condição de a pessoa ser funcionário público para dela ser investida. Assim, em vários lugares da administração pública onde se praticam salários mais elevados do que a média do serviço público, há vários servidores requisitados de outros órgãos públicos de diferentes poderes e instâncias que passam a perceber, além do salário do seu órgão de origem (a depender do órgão cedente), o valor referente à função ou cargo comissionado para o qual foi requisitado – é regra geral que a função ou cargo para o qual foi requisitado seja várias vezes maior do que seu salário pago pelo órgão de origem. Assim, a investidura desses funcionários requisitados termina por se configurar em mais um meio de se perpetuar o provimento ilegítimo dos cargos públicos, alimentando a prática patrimonial, clientelista e anti-republicana secular dos herdeiros e representantes de vastos setores da elite cartorial brasileira. Para ficar mais clara a questão, vamos a um exemplo real:

No Tribunal Regional Federal da 5a Região e no Tribunal Regional Eleitoral, ambos com sede no Recife, cerca de 50% (cinquenta por cento) em média dos funcionários que ali trabalham são requisitados. Em sua grande maioria, são funcionários de pequenos municípios ou funcionários estaduais que percebem baixos salários em seus órgãos de origem. Alguns desses funcionários requisitados foram admitidos no serviço público sem concurso (em casos anteriores a 1988) ou se submeteram a concursos em que o critério de seleção aplicado aos então candidatos era infinitamente inferior aos critérios de aprovação e classificação que tiveram que se submeter os que prestaram concurso público para provimento direto nos cargos efetivos desses tribunais. Não é também incomum existirem várias suspeitas sobre a idoneidade de concurso público realizado em municípios com cerca de 10.000 habitantes nos quais inexistem fiscalização rigorosa e uma sociedade civil capaz de pôr freios às práticas de mandonismo de vários dos seus líderes locais de plantão. Não se torna difícil, em tais circunstâncias, que muitos desses concursos públicos terminem por legitimar a investidura em cargo público por razões e relações pessoais que não poderiam se abrigar na licitude. De qualquer modo, a principal razão pela qual esses funcionários são requisitados não é o bem do serviço público. No exemplo aludido, é notória a desnecessidade do quantitativo de funcionários lotados nesses órgãos públicos; não são a quantidade e a demanda de trabalho que exigem a presença dos requisitados, mas sim a necessidade de abrigar apadrinhados e parentes de juízes, desembargadores, ministros de tribunais, senadores, governadores e ex-governadores, deputados estaduais e federais, razão pela qual se faz uso da lotação da máquina pública por critérios completamente espúrios. Desnecessário se faz ressaltar que a vasta maioria desses requisitados não seria aprovada em concurso público destinado ao provimento direto dos cargos efetivos do tribunal nos quais se encontram à disposição. A situação real desses tribunais, quanto ao que foi exposto, não é diferente da situação de vários outros órgãos públicos nos quais haja funções e cargos comissionados em abundância. Apesar da obviedade, deve-se ressaltar que essa pretensa “vontade de servir ao público” por parte dos que nomeiam os requisitados e por parte dos que são nomeados não se vê atendida precisamente nos órgãos que certamente estão mais necessitados de servidores, mas que não possuem, entretanto, as mesmas benesses para oferecer.

É nesse contexto, portanto, que se esclarece o teor e propósito da PEC 2/2003. Seu autor, o Deputado Federal Gonzada Patriota, pretende efetivar os funcionários requisitados nos órgãos onde se encontram lotados. A que se presta tal medida? Claro está que não objetiva o bem público, mas sim o interesse particular, patrimonial e clientelista do seu autor (que por sinal indicou alguns requisitados para o TRF da 5a Região), de desembargadores, ministros de tribunais e políticos em geral que usam e abusam dessa prática. Ou seja, trata-se, ao fim e ao cabo, de um assalto aos cofres públicos para garantir privilégios escusos e para legitimar uma situação totalmente ilegítima, posto que tem por objetivo premiar a incompetência e os laços de relacionamento ou de lealdade pessoal daqueles que serão contemplados com aquilo para o qual não têm as necessárias prerrogativas e competências aferidas, como determina a lei. Além disso, tal medida viria a fortalecer o mandonismo e patrimonialismo das autoridades que administram a coisa pública segundo seu interesse particular, sem nenhum compromisso com a publicidade, impessoalidade, moralidade e legalidade, princípios basilares da ordem republicana.Ainda do ponto de vista financeiro, a aprovação de tal medida importaria em flagrante prejuízo financeiro para a União, posto que, tendo em vista os salários dos seus cargos efetivos serem em média maiores do que seus congêneres estaduais e municipais, a grande maioria de funcionários requisitados se encontram nos órgãos da administração federal, especialmente nos poderes judiciário e legislativo. Assim, a legalização de tal ilícito importaria também em aumento do gasto federal com pagamento de pessoal, sem que isto tivesse advindo do provimento de vagas via concurso público. Deve-se também avaliar o impacto que isto causaria para a previdência no futuro, uma vez que foi por artifícios dessa natureza que a previdência pública chegou à situação difícil em que se encontra. Outrossim, é bom que se esclareça que a ignominiosa PEC 2/2003 nada fala quanto à forma pela qual tais funcionários seriam enquadrados nos cargos efetivos de cada órgão, o que se configura em algo completamente contrário aos princípios constitucionais segundo os quais os cargos públicos efetivos somente podem ser criados por lei e ocupados por meio de concurso público. Desse modo, seriam criadas mais vagas nesses órgãos sem o devido processo legal, sem a realização de concurso público e sem a devida previsão de dotação orçamentária. Do mesmo modo, a referida PEC não menciona o que aconteceria com os cargos e comissões que tais requisitados ora ocupam. A se manter o princípio patrimonial que inspira tal proposta, certamente esses cargos e comissões ficariam vagos para serem preenchidos por outra leva de apadrinhados e protegidos, até que viesse mais outra PEC para efetivar mais uma vez os que não foram selecionados pelo critério da impessoalidade e competência para o cargo que pretendem ocupar. Tudo isso em prejuízo claro e inequívoco do erário público e do princípio republicano.Diante de tudo isso, vale claramente a pergunta: “A quem interessa a aprovação da PEC 2/2003?”.

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